(Texto escrito para o 8 de Março de 2016)
No último 17 de fevereiro, o governo federal anunciou sua pretensão de aplicar uma reforma ao sistema previdenciário, cujo projeto será redigido e entregue ao congresso em um prazo de 60 dias. Entre as várias mudanças sugeridas e esperadas, está a elevação e fixação do limite de idade para aposentadoria, justificado pelo argumento de que o limite de idade nacional é inferior ao padrão mundial (os brasileiros se aposentariam, na prática, em torno dos 58 anos, enquanto em outros países essa média é de 64 anos). Somada a essa potencial mudança, está a intenção de igualar o limite de idade para aposentadoria de homens e mulheres (bem como de trabalhadores rurais e urbanos), significando, na prática, que mulheres precisariam despender, em trabalhos formais, pelo menos 5 anos a mais do que atualmente.
Essas mudanças pontuais objetivam manter as pessoas trabalhando e contribuindo por mais tempo em troca de seus benefícios previdenciários, o que afetaria sobretudo as classes baixas e grupos com situação socioeconômica precária, que adentram o mundo do trabalho muito cedo e responsabilizam-se pelas atividades mais extenuantes e insalubres. Contudo, à parte inúmeras críticas que possam ser feitas às reformas gerais que se pretende introduzir, queremos, aqui e agora, discutir especificamente a elevação e equiparação da idade de aposentadoria entre ambos os sexos e as implicações desta política nas vidas das mulheres.
Embora mascarada como uma ação que clame pela igualdade entre os sexos na esfera pública, a medida de equiparação estabelece uma falsa simetria: é cega para o fato de que as jornadas de trabalho entre homens e mulheres são apenas aparentemente equivalentes em recursos despendidos, e isso ocorre porque parte das energias, esforços e tempo das mulheres é também gasta em funções socialmente não consideradas como trabalho – principalmente no caso de mulheres pobres e negras. Isto é, uma reforma desse caráter parte do falso pressuposto de que a divisão sexual do trabalho e a exploração que as mulheres sofrem em seu próprio ambiente doméstico, no que se refere à execução de tarefas e ao trabalho de criação e cuidados, são realidades superadas – quando, de fato, elas não são. Temos que cuidar para que a forte presença atual de mulheres na esfera pública de trabalho não nos faça esquecer que, na esfera privada, são também elas que continuam a desempenhar a quase totalidade das atividades, precisando conciliar duplas ou triplas jornadas de trabalho.
As mulheres são consideradas inquestionavelmente como as responsáveis por um trabalho socialmente invisível e desvalorizado, cotidiano, sem restrição de jornada, sem o benefício da aposentadoria: o trabalho doméstico. O trabalho doméstico desempenhado pelas mulheres e entendido socialmente como “vocação natural da mulher” ou desempenhado “por amor”, é o trabalho que garante as condições sociais de vida mais básicas àqueles que com elas convivem. Um trabalho mais intenso para as mulheres pobres e negras que, diferentemente de um contingente das classes mais elevadas, não detêm recursos materiais para terceirizar a execução desses serviços, ou seja, contratar trabalhadoras domésticas assalariadas. Ou seja, maridos, filhos e outros dependentes têm sua certeza de alimentação, cuidado, ambiente asseado e saudável, entre outros, a partir dos resultados de uma atividade que não é desempenhada por eles, mas para eles; pelas mulheres da casa, as quais não recebem, pela atividade, remuneração ou retribuição equiparáveis aos seus esforços, uma vez que eles não são considerados trabalho.
Assim como as tarefas domésticas, que têm para o sexo feminino um caráter de naturalidade e obrigatoriedade, acreditamos que também a maternidade deve ser incluída no espectro do trabalho desempenhado pelas mulheres; e, aqui, consideramos maternidade não apenas como a fase de gestação, mas como uma atividade de produção e reprodução de populações, que se dá através do parto e da criação. Como o trabalho doméstico, a maternidade é socialmente romantizada, entendida como “destino”, “vocação”, ou experiência essencial de qualquer mulher que pretenda ter uma vida plena e feliz. E também como o trabalho doméstico, o esforço, os recursos e o tempo que as mulheres gastam gerando e criando filhos são invisibilizados e justificados como naturais através de ideias generalizadas de senso comum, como a de amor materno incondicional. Segundo dados de 2013 (IBGE, 2013; disponível em: http://brasildebate.com.br/a-dupla-jornada-das-mulheres-no-brasil/), 88% das mulheres ocupadas realizavam trabalho doméstico (mulheres de 16 anos de idade ou mais), e para os homens esse percentual é de 46%; a média de horas gastas em afazeres domésticos semanalmente também é discrepante – enquanto mulheres gastam em média 20,6 horas por semana com trabalho doméstico, homens gastam 9,8 horas.
Portanto, aumentar a idade de aposentadoria das mulheres, equiparando-a à dos homens só reforça uma realidade já existente: em geral, mulheres trabalham mais do que homens – somando-se seu trabalho civil, as horas não estipuladas de trabalho doméstico, as de reprodução e manutenção da existência de outros indivíduos e criação de filhos. Além disso, é de suma importância relembrarmos que, também na esfera pública, se comparadas às contrapartes masculinas de sua mesma classe social (e isso ocorre em todas as classes), as mulheres são aquelas a quem são destinados os trabalhos mais mal pagos, as ocupações mais precarizadas ou informais, além de continuarem a receber menos pela mesma função desempenhada. Essa não valorização ou subvalorização do emprego público feminino é apenas uma outra face da realidade perversa de valorização das atividades domésticas e da maternidade como as únicas tarefas verdadeiramente próprias à mulher; e assim ressaltando, mais uma vez, a divisão entre o ambiente público, masculino, e o ambiente privado, feminino.
É de suma importância deixarmos claro somos contra a equiparação das idades de aposentadoria entre os sexos simplesmente porque acreditamos que ela prejudica ainda mais a vida das mulheres, significando um reforço de sua exploração e da invisibilização dos recursos despendidos no trabalho doméstico e na maternidade compulsórios. Mas manter um regime previdenciário em que as mulheres trabalhem 5 anos a menos não é a solução que buscamos para o problema: a exploração laboral das mulheres no âmbito doméstico e a exploração de sua capacidade de reprodução (biológica e social) são algumas das bases da dominação masculina, e subverter o patriarcado exige destruir essas formas de exploração às quais as mulheres são confinadas de maneira normalizada.
Contudo, nesse 8 de Março, lutar contra a elevação da idade de aposentadoria das mulheres é apenas uma de nossas pautas: hoje, como em todos os dias, seguimos lutando pela legalização e regulamentação do aborto como um direito inextirpável das mulheres de autonomia sobre si mesmas; pela abolição da prostituição, da pornografia e de toda indústria do sexo que confina as mulheres à exploração brutal de seus corpos; contra a violência doméstica e o estupro em todas as suas formas, venha ele de terceiros desconhecidos, de pais, de irmãos, de maridos; contra a obrigatoriedade de ser mãe, contra a exploração do trabalho doméstico, pelo fim da obrigatoriedade naturalizada da heterossexualidade. Pela libertação das mulheres.